Ruído

Nem todos entendem o motivo, mas, para trabalhar, os DJs precisam de bons fones de ouvido. Acontece que, por conta de um bocado de fatores, as músicas precisam ser ouvidas antes da reprodução, antes de todos ouvirem. E, enquanto outros dançam, os DJs estão assim: vestidos com headphones, sempre ouvindo e preparando a próxima música.

Nem todos entendem o motivo, mas há quem seja simplesmente bom. Há quem pense pouco ou nada em si justamente para se doar, para se entregar de corpo e alma aos outros sem qualquer razão aparente. E há, tão nobre, tamanha a evolução espiritual, quem prefira ser bom e fazer o bem o tempo inteiro. Como se a benevolência fosse — e é — um dom.

Eu ainda não entendo o motivo — afinal de contas, não o tirava dali por nada —, mas quando abri a mochila de equipamentos numa de minhas centenas de noites como DJ, meu fone não estava lá. Esqueci, tirei. E, para um DJ, nada é como não ouvir as próximas músicas. Nada. Nada a fazer. Ou quase nada, pois é muito comum que o cérebro associe situações como essa aos benevolentes. E aí, quando o pior está por vir, eles surgem exercendo, literalmente, o que têm de melhor: a bondade.

Eu entendo o motivo que fez meu pai sair daquele churrasco. Sempre rodeado de amigos, ele nutre paixões pelo barulho da grelha e copos a tilintar. E não foi necessário muito para que ouvisse também o toque do telefone e um chamado de ajuda: houve um problema, pai, o fone não estava lá e eu gostaria de saber se o Sr. estava por ali, na região nobre do Pacaembu. Não estava. O queima-carne acontecia em Guarulhos. E Guarulhos não curte viver encostado. É longe.

De tão bondoso, ele resgatou o fone de ouvido em minha casa e, minutos depois de se despedir dos amigos antes do previsto, atravessou a Marginal Tietê para me encontrar no Pacaembu e entregá-lo; não o que eu costumava usar, mas outro, pego por engano. E mesmo sabendo que o fone de ouvido reserva serviria, ele não se deu por satisfeito: retornou a Guarulhos, resgatou o outro fone de ouvido e, duas horas depois de se despedir dos amigos antes do previsto, atravessou novamente a Marginal Tietê para me encontrar outra vez no Pacaembu e entregar o fone de ouvido correto, sem me avisar. E tudo porque — eu entendo bem o motivo — meu pai quer fazer o bem a todo custo, a todos, sem esperar nada em troca. É um ser humano exemplar, benevolente, com o coração bom como poucos são.

Hoje não precisei do fone de ouvido para ouvir meu pai dizendo, com um olho entreaberto, que sua velhice está chegando. Disse que passará por uma cirurgia ocular na sexta-feira e, embora com muita fé acreditemos que o procedimento ocorrerá bem, a mim soou como um ruído. Um daqueles sopros que, tão silenciosos, soam como um estampido ou um forte zunido no pé do ouvido. Não foi fácil, assim como não me parece fácil entender por que seres humanos tão bons, com tão raro dom, sofrem tanto — ou até mais — com a velhice e com os mesmos males que nós, reles mortais.

Eis o tal mistério?

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