Sobre a morte

 

 

É certo: uma hora o coração pára. Pára o corpo, param mente e sistema. Silenciam-se. Fim. E a certeza de que a vida num instante existe e noutro se finda merece, por si só, uma reflexão. Não porque o refletir-sobre-a-morte seja ato agradável, mas porque, eu creio, ao evitar refletir sobre a morte nós deixamos de melhor vivenciar a vida. E ainda que — como dizia Epicuro há mais de 2400 anos — “não haja nada a temer na morte”, seu insabido momento não permite que nos programemos. Porque eu posso estar aqui, sentado a pensar, dormindo a sonhar, aprendendo a desenhar […] e de repente, sem mais, sequer um segundo a mais, não mais estar. Morrer. Simples assim.

Nascemos, somos criados, criamos e morremos. Entre um ponto e outro, a vida em cores [ler texto]. E às famílias que surgem entre esse ponto e outro, uma primeira dura certeza lógica: exceto nos raros casos em que todos morrem ao mesmo tempo — como, por exemplo, num acidente aéreo —, fatalmente o filho morrerá primeiro que o pai ou o pai, primeiro que o filho. Morrerá primeiro a mãe ou o filho a deixará neste mundo a chorar sua morte. Fato. Obviamente que se levarmos em conta o processo natural dos acontecimentos, é bem possível que boa parte das pessoas mais velhas morram antes que as mais novas, ou seja, provavelmente os atuais pais e avós já tenham falecido quando novos pais e novos avós surgirem. Nesse sentido, a dura reflexão traz à tona uma segunda certeza lógica, esta mais inebriante: a menos que a-da-foice já esteja prestes a bater em nossas portas e morramos antes que todos os outros, inevitavelmente veremos alguns de nossos entes queridos falecendo, mortos. Inevitavelmente — o que significa que não haverá outra saída —, também uma terceira certeza lógica: sofreremos com isso. E então, para ludibriar o sofrimento, sentiremos saudades, guardaremos as fotos, as lembranças, o cheiro, o toque, as manias, as frases de efeito e, se pudermos, trocaremos qualquer coisa por um minuto a mais com a falecida pessoa. Qualquer coisa em troca de um forte abraço a mais, um toque a mais, um beijo a mais, uma ligação a mais, um não a mais, uma repetição da mania que hoje ainda nos irrita. No fim, sonharemos com um tempinho a mais com aquela que, morta, nada mais pode porque não mais estará, não mais haverá. […] Mas se a lógica nos leva à conclusão de que inevitavelmente veremos alguns de nossos entes queridos falecendo, há de se considerar também algo em favor dos ainda-vivos: a conjugação do verbo no futuro — veremos. Isso significa — embora alguns já tenham partido e deixado seus legados — que muitos de nossos entes queridos ainda permanecem respirando, vivinhos da silva. E é bem provável, por exemplo, que alguns deles inclusive estejam conectados à internet neste exato momento ou mesmo dormindo, cozinhando, assistindo a programas patéticos na tv ou enchendo às bordas as paciências de outras pessoas por aí. Ainda estão vivos! […] E neste ponto a reflexão muda de figura.

Até então, três duras certezas lógicas: [1] exceto no caso em que partirmos juntos desta para uma melhor, eu morro antes ou antes morre você. Logo, [2] verei você morrer ou vice-versa. De qualquer modo, caso haja uma boa relação entre nós, [3] inevitavelmente sofreremos. Mas sofrer, neste caso, está conjugado no futuro e, posto que há o diálogo entre mim e você, estamos vivos. A coisa muda de figura porque, enquanto vivos, nada nos impede de matar saudades, registrar novas fotos, sentir o cheiro, o toque, de rir das manias e das frases de efeito. Nada impede um forte abraço a mais, um toque a mais, um beijo a mais, uma ligação a mais, um não a mais, uma conversa sobre a mania que irrita. Bem verdade, só a morte e a falta de consciência sobre as consequências da morte nos impedem de amar na plenitude. Na vida real, você está aí, eu estou aqui e também os nossos estão a respirar por aí.

Por fim, a certeza-mater é que uma hora o coração pára, volta ao nada. Enquanto bate, esforcemo-nos para minimizar o inevitável sofrimento das perdas no futuro. Porque hoje eu estou aqui, a escrever, sentado a refletir, mas de repente, sem mais, posso não mais estar. […] Hoje é pau, é pedra e, para todos nós, ainda não é o fim do caminho. O hoje ainda é, conjugado no presente.

Viva!

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